"Stranger things" nas narrativas do Natal
“Stranger things” nas narrativas do Natal
Você assistiu “Stranger Things”? As coisas estranhas te
instigam a continuar diante da tela da TV até poder desvendar o mistério, por
mais absurdo que ele pareça? Eu diria que há mistérios muito mais instigantes e
ainda mais importantes, dos quais depende todo o resto de sua existência. Sim,
eles se encontram nos famosos Evangelhos. Sim, aqueles quatro primeiros livros
do Novo Testamento. Algumas pessoas passam por eles ao longo de sua vida e simplesmente
os desprezam. “Por que perder o meu tempo com essas histórias ‘sem pé, nem
cabeça’”? Outros, meramente a partir de uma leitura superficial, à parte de uma
compreensão mais profunda do universo do primeiro século, logo concluem: “é
claro que os discípulos de Jesus, ressentidos com a morte de seu ‘messias’,
inventaram essas histórias pra fazer a comunidade daquele tempo acreditar na
religião que eles estavam inaugurando!”. Para essas pessoas, a prova do que pensam
está exatamente nas “stranger things” (coisas estranhas) presentes nos relatos dos
Evangelhos. É incrível como essas coisas não provocaram sua atenção para uma
análise mais profunda dos fatos enquanto meras ficções recheadas de mistérios
são suficientes para mantê-los acordados a noite inteira na frente da TV. Mas,
vamos à questão central!
Se os Evangelhos fossem documentos mentirosos elaborados com
a finalidade de convencer as pessoas a respeito de milagres que, na verdade,
não aconteceram; de uma ressurreição que, na verdade, não aconteceu; ou de uma
encarnação do Logos que, na verdade, não aconteceu; sem dúvida esses
"relatos" teriam sido muuuuuito diferentes ou, pelo menos, não seriam
recheados de tantas “stranger things” como, de fato, são. Os Evangelhos e, pra
falar verdade, a Bíblia toda é cheia delas, mas hoje – como o cheiro de
panetone ainda "tá rolando no ar" – listei algumas coisas a respeito
das narrativas sobre o Natal, que se encontram especialmente nos Evangelhos de
Mateus e Lucas.
Pra começar, levando em conta a comunidade de ouvintes e
escritores desses textos (fiéis judeus e prosélitos de identidade e cultura greco-romana,
no primeiro século da era cristã), a história da concepção (engravidamento) de
Jesus, não trataria de uma virgem que "achou-se grávida pelo Espírito
Santo" (Mateus 1.18). "Que coisa mais escandalosa!" Profano,
para dizer o mínimo! Loucura, num julgamento mais sensato. Para convencer aquela
comunidade de ouvintes, sem dúvida eles teriam inventado uma história mais
próxima de: um casal de jovens justos e piedosos, de uma importante família da
tribo de Judá (de preferência da linhagem de alguma realeza daquele tempo) e
que após sua noite de núpcias (o que não é impuro dentro da compreensão
judaica) ficaram grávidos de seu primogênito. Isso soa muito mais ético e muito
mais convincente. Mas, por que Mateus falaria uma coisa dessas?

E, como se já não bastasse de “incoerências”, é recepcionado
por pastores de Belém - figuras hoje romantizadas, mas que, para a comunidade
da época, eram figuras sujas. Eles cuidavam das ovelhas utilizadas nos
sacrifícios no Templo, mas nunca podiam frequentar o Templo devido ao fato de
estarem constantemente em condição de imundície. De acordo com a Torá, tocar em
animais mortos (o que era demandado constantemente por aquele ofício), torn
ava
qualquer judeu religiosamente impuro. Era essa a condição daqueles pastores.
Mas é exatamente a eles que vem o anjo do Senhor enquanto são também cercados
pelo resplendor da glória de YHWH. É a essas figuras que o anjo anuncia que, em
Belém, cidade de Davi, estava nascendo naquela mesma noite, o Salvador, o
Messias, o Senhor (Lucas 2.8-11). É para eles – e somente para eles – que aparece
uma “multidão dos exércitos celestiais” (Lucas 2.13) em um grande espetáculo,
louvando a Deus e dizendo: “Glória a Deus nas alturas, Paz na terra, boa
vontade para com os homens” (Lucas 2.14).
Mas, vamos a outra coisa intrigante: como se não bastassem
aqueles homens impuros que, pelo menos, eram judeus, o Messias também é
recepcionado e adorado por alguns homens pagãos vindos do oriente. Magos (ou
sábios, que seja!) orientais, que seguiam as estrelas (Mateus 2.1)! Eles viram
a estrela mais brilhante e entenderam que era a estrela do 'rei dos judeus'.
Pela lógica, se nasceria um Rei/Messias, com certeza haveria de nascer no
palácio. E, logicamente, foram para o palácio do rei de Israel (Herodes) e lá
ouviram dos príncipes dos sacerdotes e escribas judeus que o rei sobre o qual
os sábios do oriente falavam, havia sido prometido nas profecias e deveria
nascer em Belém da Judéia. E para lá eles foram aqueles senhores pagãos;
levando ouro, incenso e mirra como presentes para o rei que acabara de nascer
numa estrebaria. Que história mais estranha! Não sei como poderia ser uma
história "alternativa", mais aceitável para o público daquele tempo,
mas, com certeza, não seria assim. Entretanto, é exatamente este o presépio montado
por Mateus e Lucas!
Outra coisa que também me chamou bastante a atenção foi o
protagonismo feminino na confirmação do evento da Anunciação. O anjo Gabriel
anuncia a Maria que ela seria a mãe do Salvador e o evento seguinte, que
confirma suas palavras, é o encontro entre Maria e sua parenta, Isabel. Maria
visita e Isabel que, ao ouvir a saudação de sua prima (?), percebe que a
criança de 6 meses em seu ventre (que viria a ser João Batista) se agita toda;
Isabel fica "cheia do Espírito Santo" e começa a falar palavra
estranhas, aparentemente sem sentido: "Bendita é você entre as mulheres e
bendito é o fruto do teu ventre! Donde me vem a honra de ser visitada pela mãe
de meu Senhor?" (Lucas 1.42,43). O testemunho de qualquer outra pessoa -
talvez o marido de Isabel, um sacerdote judeu! - teria muito mais validade,
mas, não! O texto fala de uma mulher, uma velha senhora que, mediante sua
profecia, confirma que aquela gravidez de Maria, aquele papo de ter sido
visitada por um anjo, etc., era realmente algo que vinha da parte de YHWH, o
Deus de Israel.

“Este menino foi escolhido por Deus tanto para a destruição como para a salvação de muita gente em Israel. Ele vai ser um sinal de Deus; muitas pessoas falarão contra ele, e assim os pensamentos secretos delas serão conhecidos. E a tristeza, como uma espada afiada, cortará o teu coração, Maria!” (Lucas 2.34,35).
Que palavras incentivadoras! Logo depois, uma profetiza viúva
de 84 anos de idade começa a louvar a Deus e a falar sobre a criança “para todos
os que esperavam a libertação de Jerusalém” (v.38). Dado o grau de validade do
testemunho de uma mulher naquele tempo (ou seja, nenhum!), por que colocar esse
detalhezinho na história?
Eu diria que uma coisa é certa: se fossem histórias inventadas
para convencer as pessoas daquele tempo, essas “coisinhas” não estariam
presentes no texto e, muito menos, todas essas “coisas estranhas” que apontamos
até agora. Literalmente, elas são “escândalo para os judeus e loucura para os
gregos”. Com quanto mais criticismo eu olho para esses documentos, mais me
convenço de que algo escandaloso na concepção judaica e louco na concepção grega,
mas ao mesmo tempo real o suficiente para levar esses escritores à coragem de
relatar algo tão estranho, realmente aconteceu. Caso contrário esses caras
nunca teriam escrito textos parecidos com isso. É interessante notar que o
apóstolo João, o amigo mais próximo de Jesus de Nazaré, resumiu toda esta
história dizendo que “o Logos se fez carne e habitou entre nós”; Marcos
preferiu nem tocar nesses assuntos e já começou seu Evangelho falando sobre a
fase adulta da vida de Jesus, sendo batizado por João Batista no rio Jordão. Fico
pensando no constrangimento de Lucas, um médico sírio do primeiro século,
escrevendo ao “excelentíssimo Teófilo”, talvez um oficial romano ou um
personagem político importante de Alexandria, convertido ao cristianismo e que
possivelmente lhe havia pedido esclarecimentos a respeito da origem da fé em
Jesus Cristo, que agora havia passado a abraçar. Lucas diz ter feito uma “acurada
investigação a respeito das coisas que aconteceram desde o princípio” (Lucas
1.3). Ele não teria escrito essas coisas se não estivesse realmente convencido
de sua realidade.
Pense em Mateus, um judeu que conviveu com Jesus, foi um de
seus 12 discípulos e tornara-se então um apóstolo. Como é que ele queria convencer
seus companheiros de religião e cultura com aquela história escandalosa sobre
um messias, filho de uma virgem que ficou grávida antes de seu casamento (“essa
história de se engravidar pelo Espírito de YHWH só pode ser brincadeira!”),
nasceu numa manjedoura e foi adorado por pagãos orientais? Sinto muito por teu
ceticismo, mas preciso dizer que Mateus não teria escrito essas coisas para
seus amigos judeus se realmente não tivesse visto com seus próprios olhos,
ressuscitado diante dele, Aquele que lhe chamou da coletoria de impostos para
ser um de seus seguidores, morrido por crucificação romana um dia depois de sua
última ceia com Mateus e outros 11 discípulos. Isso confirmava pra ele a
veracidade de toda aquela história, provavelmente contada por Maria, José e
outros que presenciaram os eventos da natalidade do Messias.
Algumas histórias são estranhas demais para serem mentirosas,
mas a verdade é que permanecerão mentirosas para você enquanto não as encarar
com honestidade suficiente. Faça isso! Antes de sair por aí falando do quão estranhas
(e, por isso, inválidas) são as narrativas dos Evangelhos, eu te desafio a
encará-las com honestidade. Quando falo de honestidade, falo de um criticismo
realista, não de uma postura relativista que não precisa analisar fatos para
assumir, de repente, que Jesus, a Branca de Neve e Saci Pererê são “reais”. Não!
Aceitando você ou não a realidade dos fatos narrados, é preciso assumir que os Evangelhos
não propõem ressurreição subjetiva, muito menos uma Encarnação metafórica.
Enquanto você não encarar os textos do ponto de vista (cultural, social,
histórico, psicológico, literário, etc.) de quem os escreveu, você estará bem
longe de analisa-los honestamente. Avalie esses documentos honestamente, tente
desacreditá-los, mas com honestidade intelectual! Vá às fontes, vá aos contextos
culturais, sociais, históricos. Recorra à Arqueologia, à Lógica, à Filosofia, à
História à Antropologia... Se nada disso foi verdade, você terá pelo menos
aprendido a ser honesto intelectualmente, MAS, se, como nós cristãos afirmamos
há 2.000 anos, tudo isso É verdade, então a sua vida depende dessas coisas
estranhas. E estamos falando aqui sobre como você passará a Eternidade!
Eu diria que vale a pena perder umas noites de sono com esse mistério! Vale a pena verificar o mistério por trás do
fato que levou Mateus e Lucas a assumirem tudo isso mesmo diante de seus
contextos de perigo iminente – tanto entre judeus quanto entre gentios –, não
somente de se exporem ao ridículo, mas também de se exporem à morte.
Por Jaime Sepulcro
Por Jaime Sepulcro