Ecumenismo: Unidade, Liberdade e Caridade

Conhecer a história das diversas tradições cristãs que compreendem, de modo geral, a história da Igreja de Cristo, não é um exercício que nos causa tranquilidade. Pelo contrário, aquela sensação de conforto com "nossas doutrinas", "nossa igreja", "nossa forma de ver", "nossa opinião", etc., logo desaparece diante desse exercício, ao mesmo tempo aventureiro e confrontador. Achávamos que éramos a única expressão da fé cristã e que todos os "verdadeiros" cristãos, sem dúvida, pensavam como a gente, mas, de repente, nosso chão desaba debaixo de nossos pés. Alguns param por aí, apelando para um ostracismo eclesiástico e doutrinário e ignorando completamente a imensidão da realidade Cristã. Outros veem nisso o motivo para "abandonar o barco". Entretanto, existem "uns poucos" que, nesse mergulho no Outro, na imensidão do oceano da realidade que é a fé cristã, percebem um eixo central em torno do qual toda a constrangedora diversidade eclesiástica e doutrinária existente circula e para o qual são atraídas, como a lua pela gravidade da terra. E há uma frase histórica diante da qual tenho encontrado grande alento em minha experiência ecumênica de Encontro com os diversos ramos e vertentes do Cristianismo sobre a qual gostaria de discorrer brevemente. Elas podem ser aplicadas a diversas áreas da vida, porém acredito que em nenhuma delas se encaixam tão bem quanto no contexto para o qual foi formulada: o próprio Cristianismo! Tivessem os grandes líderes cristãos compreendido a essência dessas palavras, talvez não teríamos tantos embates ou mesmo cismas capazes de dividir tanto o corpo de Cristo como vemos na atualidade. Não se sabe exatamente sua origem, mas sabemos (documentalmente) que ela se encontra no final de um tratado escrito por Peter Meiderlin, teólogo luterano da cidade de Augsburg - Alemanha - no ano de 1627 e talvez já fossem bastante utilizadas por toda a Europa há alguns anos: “In necessariis Unitatem, In non-necessariis Libertatem, In utrisque Charitatem”. A frase pode ser traduzida como: "No essencial, Unidade. No não essencial, Liberdade. Em tudo, o amor". Gosto mais da tradução "Caridade", já que corre menos o risco de ser interpretada num sentido sentimentalista e melindroso.
Mas vamos à frase...
"No essencial, Unidade"...
Apesar das inúmeras divergências e diferenças doutrinárias entre as tradições cristãs, é inegável que há pontos doutrinários claros nas Escrituras Sagradas sobre os quais qualquer um que se considere cristão, independentemente de sua confissão específica, não poderia discordar. A paternidade do Deus Todo Poderoso sobre os que creem em Jesus, expressa na introdução da Oração do Senhor em Mateus, capítulo 6, é um grande exemplo disso. A divindade de Cristo, o Logos encarnado, expressa por João na introdução de seu Evangelho e também por Jesus quando diz que Ele e o Pai são Um também é um belo exemplo disso. É interessante notar, nesse sentido, que o Credo do Apóstolos, uma formulação da igreja primitiva preservada pelas diversas tradições cristãs - provavelmente desenvolvida nas primeiras confissões batismais entre os séculos II e IV (e que também está na base do Credo Niceno) - é um símbolo que, independentemente de não ser proclamado ou rezado pública ou individualmente por muitas igrejas cristãs na atualidade - especialmente as evangélicas - expressa exatamente aquilo em que cremos a respeito da natureza de Deus. Neste quesito, quem não confessa - ou seja, quem não concorda com - o Credo nem mesmo pode ser chamado de cristão. Ali estão os principais pontos que reivindicam o quesito de UNIDADE nas confissões cristãs a respeito da Natureza de Deus. Ele pode ser traduzido como:
Creio em Deus Pai, Todo-poderoso, Criador do Céu e da terra.
E em Jesus Cristo, seu único Filho, nosso Senhor, o qual foi concebido por obra do Espírito Santo; nasceu da virgem Maria; padeceu sob o poder de Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado; desceu ao hades; ressurgiu dos mortos ao terceiro dia; subiu ao Céu e está sentado à direita de Deus Pai Todo-poderoso, donde há de vir para julgar os vivos e os mortos.
Creio no Espírito Santo; na Santa Igreja Católica; na comunhão dos santos; na remissão dos pecados; na ressurreição do corpo; na vida eterna. Amém.
Logicamente o Credo não resume toda a nossa fé. Por exemplo, o que cremos a respeito da Lei de Deus, diante da qual todo homem é indesculpável (porque também desobediente), não se encontra no Credo, mas especialmente no Decálogo, descrito detalhadamente em Êxodo, capítulo 20. Todo cristão compreende que se tratam de leis universais que tornam todo homem desobediente, indigno e incapaz de se aproximar de Deus, não lhe restando outra opção senão a aproximação por meio de Jesus Cristo.

Do mesmo modo, podemos dizer também que a Oração do Senhor se constitui num símbolo de unidade da compreensão cristã sobre a relação da Igreja com o Deus Todo Poderoso - ou seja, uma relação de paternidade - e também sobre a condição pecaminosa desses filhos que, coletivamente e diariamente, devem orar: "perdoai as nossas ofensas" e "não nos deixes cair em tentação".

Sem dúvidas esses três "símbolos" são de confissão - concordância - inegociável para qualquer cristão (e é por isso que reivindicam UNIDADE) ainda que não esgote - como pensam alguns - todo o conteúdo da fé cristã.
"No não essencial, Liberdade"...

Passemos agora ao campo das interpretações cristãs, tão diversas quanto eram as interpretações rabínicas da Torá e dos profetas entre os judeus e tão fortes a ponto de tornarem-se em ethos de toda uma geração, etnia ou região, como acontecia na Judeia com a "jornada de um sábado", os tempos de jejuns, as exceções para o divórcio ou com a importância religiosa de se lavar as mãos antes das refeições. Eram traços, ao mesmo tempo, culturais e religiosos. Não eram necessariamente ruins. Jesus participa dessas interpretações/tradições quando celebra a última ceia, por exemplo, utilizando elementos que nem mesmo estavam presentes na instituição da cerimônia pascoal no Velho Testamento, como o vinho e, em particular, "o cálice da Nova Aliança", introduzido naqueles tempos como tradição pelo rabino Hilel (antes de prosseguir, creio que caiba aqui um parêntese para afirmar que Jesus "eleva" esse aspecto do costume da tradição judaica de seu tempo ao nível do ESSENCIAL ao instituir a Santa Ceia). É importante apontar que essas formas de relação com a Torá eram constantemente questionadas por Jesus por serem tratadas como formas únicas e absolutas de espiritualidade quando, na verdade, estavam sujeitas a todo tipo de erro e hipocrisia (como era o caso da tradição da Corbã, confrontada por Jesus em Mateus 7.11-12). É nesse nível que Jesus denuncia a hipocrisia dos fariseus, ao contrário do que pensam alguns cristãos que, loucamente, concordando com os judeus ortodoxos do primeiro século, ousam acreditar que Jesus questionava e destruía a própria Torá e os Profetas quando Ele mesmo diz que não faria isso em hipótese alguma (Mateus 5.17). Essas coisas estão no campo do "Essencial" e reivindicam "Unidade" - não falo aqui das leis judaicas cerimoniais, civis ou mesmo religiosas, mas do princípio que permeia todas elas e que incrivelmente melhor traduz o conceito de Torá. É por isso que São Paulo, embora compreendesse que nossa justificação não vem pela obediência à Torá, continua se baseando nela para delinear o que é pecado. É lamentável como alguns cristãos hoje relativizam todos os princípio da Torá, classificando-a no campo do "Não Essencial" - ou talvez do Abominável mesmo! - a fim de defender suas bandeiras em prol de um novo conceito de família, da homossexualidade ou outras formas de sexualidade ou relações sociais promíscuas. E são promíscuas exatamente porque o espírito da Torá aponta o sentido das relações corretas.

Mas voltemos ao "não essencial". Como cristão leigo que sou, apesar de muito encantado com toda a diversidade das tradições cristãs, não posso, com isso, abandonar minha identidade (meu berço) e deixar de dizer que creio em certas formulações particulares a respeito da doutrina cristã que considero mais coerentes de acordo com as Sagradas Escrituras. É assim que assumo também o tronco ou ramificação eclesiástica a que pertenço na grande árvore que é o cristianismo. Para mim, a posição adotada por cada crente neste nível (do "não essencial"), tem tudo a ver com a saúde de sua espiritualidade e de seu caráter - fazendo um trocadilho, é essencial posicionar-se no campo do "não essencial". Não há como concordar com tudo ao mesmo tempo, a não ser que sejamos verdadeiros esquizofrênicos intelectualmente falando. O "mergulho no outro" me ajuda a ver que aquilo em que acredito (no campo do "não essencial") tem muitas chances de estar errado e me coloca em uma disposição mais humilde em relação àquele conjunto de crenças que assumo. Entretanto, o que não pode ele não pode promover é o dissolvimento de minhas crenças neste campo, pois a  minha experiência concreta e implacável do dia a dia me reivindica uma postura diante dessas questões e, a não ser que eu seja um esquizofrênico, eu não posso ser pluritradicional (vale notar que esta palavra é, em si, um verdadeiro contrassenso) em minha espiritualidade. Por isso não é sinal de doença, mas de saúde, adotar (ainda que criticamente) um linha teológica, uma tradição eclesiástica, etc. Se não sabemos apreciar ("amar a nós mesmos"), não há qualquer referência para a apreciação do Outro (ou seja, para se "amar o próximo"). Pense em como seria esquisito se nosso irmão pastor pentecostal que, após conhecer as ricas tradições litúrgicas romanas, de repente, chegasse diante de sua comunidade e dissesse: "elevai os vossos corações!". ou, "rezemos agora: 'Ave Maria cheia de graça. O Senhor é convosco (...)' ". O pentecostalismo se constrói diferentemente disso. É caracterizado pela espontaneidade das orações e das práticas, pelo fervor dos louvores, pelo espaço às oportunidades. Quando você pensa que certas práticas descaracterizariam uma comunidade, é porque estão atentando contra sua identidade. Tenho inúmeros irmãos em Cristo que discordariam plenamente de minhas afirmações "não essenciais", entretanto, precisam compreender que suas discordâncias - baseadas em ideias melhores ou piores, isso não importa aqui - não podem anular o fato de que cremos no mesmo Deus, na mesma Escritura Sagrada, no mesmo Cristo e, assim, estamos unidos no mesmo Espírito. É por isso que podemos considerar essas questões como NÃO ESSENCIAIS e, neste contexto, acredito que a postura mais ética a ser adotada pela cristandade é a de LIBERDADE. Nós divergimos em variados pontos de vista. Uns são "terraplanistas", criacionistas da "terra jovem", outros acham que o evolucionismo explica melhor a forma como Deus realizou sua Criação; uns defendem uma forma correta (e/ou uma idade correta) de se batizar, outros defendem outras formas (e idades); outros ainda realizam todas as formas existentes de batismo. Quanto à visão escatológica há amilenistas, milenistas, pré-tribulacionistas, midi-tribulacionistas, pós-tribulacionistas, dispensacionalistas, aliancistas, etc. É saudável entender que sua forma de compreensão é a mais coerente, independentemente de qual seja - não assumir isso é falsa modéstia (daí pra pior!). Entretanto, o que nos une é o Amor (a Caridade) de Deus que está em Cristo Jesus, NOSSO Senhor, do qual NADA no mundo poderá nos separar (Romanos 8.31-39). E é este amor (caridade) que fecha com chave de ouro essa frase espetacular:
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"Em tudo, o Amor".
"(...) o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado" (Romanos 5.5). É neste sentido que afirmamos que o amor é um dom (carisma) de Deus, colocado no coração de seus filhos, capacitados, a partir de então, para amar. O amor jamais acaba (I Coríntios 13.8) e é por isso que encabeça toda a Lei (Romanos 13.8,9). O amor é o princípio tanto da Liberdade, quanto também da Unidade; portanto, da Coexistência. Algumas pessoas entendem isso muitíssimo errado quando acham que essa parte da frase dá "carta branca" para as diversas heresias e liberalismos que surgem na atualidade. Na verdade essa máxima sempre esteve presente na Igreja Cristã e foi com muito amor que o "apóstolo do amor" resistiu implacavelmente os gnósticos de seu tempo e com o mesmo amor que Jesus, em Apocalipse, diz que "odeia as práticas dos nicolaítas" e resiste também a "doutrina de Balaão" e os ensinamentos de Jezabel. E fizeram isso porque o amor a Deus (condicionado pela obediência, de acordo com o próprio Jesus - João 14.12) é essencial, incondicional e inegociável. Os que se utilizam dessa máxima hoje para justificar as diversas formas de revisionismo teológico não sabem o que estão fazendo - ou sabem e demonstram mais claramente ainda sua hostilidade para com Deus.
É com o mesmo amor que  Santo Agostinho combate Pelágio, que Santo Atanásio resiste a Ário e que Lutero resistiu ao Papa Leão X; pois esse amor não é somente pelo próximo, mas, antes de tudo, para com Deus, acima de todas as coisas. Entretanto não podemos nos esquecer de que esse amor deve permear também nossas discordâncias, nossas diferenças, fazendo com que compreendamos nossa irmandade apesar das diferenças. Ele é nossa unidade no meio da diversidade. Mas, antes de concluir, creio que seja importante também apontar que, com base em uma suposta afirmação da Caridade, muitos hoje têm apelado à uniformidade e isso não é bíblico.
Tais pessoas não se cansam de confundir Caridade com Melindrosidade; e tudo o que isso provoca é a descaracterização (e consequente empobrecimento) da espiritualidade de muitos cristãos. O próprio São Pedro afirmou que a graça de Deus é multiforme! Ela nos alcança de diversas formas, em nossas condições sociais, culturais e históricas; preservando o que é essencial, relativizando (num sentido próprio da palavra) o que não é e nos capacitando a amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo (o Outro, a outra tradição, a outra cultura) como a nós mesmos. Não é necessário discorrer sobre como isso é Essencial para a fé cristã! É aí que se resume toda a Torá! E é assim que poderemos, em nossa liberdade e em nossa unidade, exalar ecumenicamente o bom perfume de Cristo, Seu amor, por onde quer que passemos.
No amor de Cristo,
Jaime Sepulcro,
líder responsável pela Comunidade Anglicana Âncora BH.

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